Tuesday, August 15, 2006

Coisinhas da Metrópole (I)


Morar e viver na metrópole tem características do movimento acelerado, das confusões cotidianas, dos ritmos desencontrados, da falta de tempo para desenvolver todas as atividades que pretendemos. Quantos lamentos tenho ouvido das pessoas que estão na Metrópole! Tudo parece o caos e o discurso saudosista dos modos de vida de antigamente ganha a admiração de muitos.
“No meu tempo”, dizem alguns, o velho era respeitado. “Naquela época”, reforçam outros, a palavra valia mais do que qualquer coisa. “Quando aqui não tinha nada disto”, registram outros, todo mundo conhecia todo mundo. E as frases que dão o tom de como era a vida corriqueira na metrópole de ontem seguem seduzindo e encantando as pessoas. As palavras dos velhos nos dão o tom de que muita coisa mudou neste “mundo de meu Deus”, só para citar mais uma frase bastante comum utilizada atualmente.
Fico aqui a perguntar se realmente as coisas mudaram ou apenas não percebemos que ainda hoje podemos dizer que expressões como “no meu tempo” ou “naquela época” ainda não perderam o seu prazo de validade. Vou enveredar pelas pequenas experiências cotidianas para explicar a minha dúvida sobre a validade das expressões citadas.
Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, um dos estados mais ricos do país. Nela vivem mais de dois milhões de habitantes. Nesta cidade o trânsito é maluco, há sérios problemas de habitação e de saúde, os índices de violência assustam e a as pessoas adoram comer pão-de-queijo. Muitos dizem que não conhecem sequer os seus vizinhos. Que pena, também não conheço os meus, nem esboçamos o mínimo de intimidade a não ser os velhos (mas importantes) cumprimentos formais.
Mas há um menino chamado Gabriel, que deve ter entre 7 e 9 anos, que traça caminhos diferentes das formalidades e imediatismo. Ele é meu vizinho. Entra na minha casa sem pedir licença e vai logo perguntando se não tenho docinhos para dividir com ele. Não sei de onde ele tirou a idéia de que tenho docinhos em casa, mas vai entrando sem cerimônia, perguntando o que estou fazendo, para onde fui, onde está a minha família etc. Dia destes, sem nenhuma cerimônia entrou no meu carro, conversou até dizer chega e me perguntou pra onde eu ia. A metrópole permite informalidade e intimidade.
O menino Gabriel quebra as relações formais, estressantes, angustiantes. Ele muitas vezes sequer fala comigo quando algo o aborreceu, mas de vez em quando comemos algumas balas juntos e esboço um início de convivência mais próxima com os seus pais. Coisinhas da metrópole.
Depois de um dia de trabalho de campo para a pesquisa de doutorado que estou desenvolvendo, paro para tomar um caldo em um destes centenas de botecos que funcionam em BH. Já passei por lá umas três ou quatro vezes e o dono, que me viu algumas vezes de longe grita “Paulinho”. Parece que somos velhos conhecidos e chego a acreditar nisto. Sai do balcão e vem me cumprimentar e perguntar como foi o dia, o que fiz e onde anda o meu amigo que foi lá comigo da última vez. Fiz um esforço para me lembrar do tal amigo e vejo que o dono do boteco esta bem bom de memória. Havia um amigo comigo da última vez que estive aqui? Pensei comigo.
Para esboçar um papo com o dono do bar, perguntei-o sobre o horários de funcionamento do local e ele disse que abre às 17 horas e fecha por volta de meia-noite todos os dias. Mas, complementa ele, “quando bate a saudade da mulher, eu fecho qualquer hora. Hoje é um dia que eu vou fechar mais cedo pois estou com saudade da patroa”. Apressei a colherada e terminei de tomar o meu caldo para não atrapalhar o romance do velho proprietário do boteco que foge do tempo padronizado de funcionamento de bares e da sedução do lucro em ir até o último cliente e inventa um outro tempo. O tempo das pessoas. Coisinhas da metrópole.
No meu bairro há uma banca de revistas bem próximo de onde moro. É daquelas com aspectos ainda mais antigos, quadradona, sem geladeiras para a venda de sorvetes, com poucas opções de revistas, não há livros para a venda e fecha bastante cedo.
Fui comprar jornal em um destes finais de semana nesta banca e não tinha dinheiro trocado em mãos. Voltei sem o exemplar? Claro que não. A mulher do jornaleiro disse que não havia problemas, que poderia pagar depois, pois eles já me conhecem. Me conhecem? Perguntei a mim mesmo. “Você passa aqui todos os dias pela manhã, pode pagar depois, não precisa ser amanhã. No dia que você quiser”, enfatizou a mulher.
Ah, meu Deus, pensei, como estas coisinhas da metrópole são boas para recompor o organismo e nos fazer acreditar no outro. Quem dera os bancos tivessem esta mesma flexibilidade que os jornaleiros me permitiram. Acho que leria mais. Se o tempo das aulas, da pesquisa e da produção científica se amparassem na teoria do dono do bar, descansaria mais. Se me permitisse dividir mais docinhos e intimidades com o outro, com certeza amaria mais. O “naquele tempo” é hoje, basta olharmos com um pouco mais de atenção.

Este artigo seria originalmente o primeiro do blog. Depois ficou perdido el algum lugar. Dedico-o a Adriana Angélica, que conheci “naquele tempo” do mestrado e que hoje desenvolve a sua pesquisa de Doutorado sobre a memória dos velhos de BH.

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