Sunday, August 20, 2006

Quase um texto

Alguns leitores já sabem, outros ainda não, mas esta semana serei um quarentão. Estou quase lá. Por este motivo escrevo hoje sobre a perspectiva apontada pelo "quase", vocábulo que frequentemente está na nossa conversa diária e nos incomoda muito.
Sim, porque o "quase" parece sinalizar desmotivação, pouco empemho, fragmentos, inconclusão. O "quase" chega com gosto de impossibilidades. Não gostamos disso. O quase nunca é o todo.
"Eu quase perdi o horário", dizem milhares de amantes todos os dias aos seus parceiros. A falta de pontualidade pode apimentar a relação e permitir que as partes sintam mais falta uma da outra. Nem tudo está perdido. A espera é sempre uma possibilidade.
"O relacionamento quase acabou por conta disto", reclamam alguns quando há incompatibilidade de gênios entre as pessoas com as quais mantém relação de intimidade. O "quase", neste caso, significa que algo solidifiocou-se, ganhou dimensão maior: a partilha da vida em comum.
"Estou quase ganhando nenêm". Quer certeza maior de que o termo "quase" enquanto visão fragmentária de algo sem conclusão não se estabelece? Aqui, o "quase" endossa que o bebê já ganhou uma identidade própria, já tem uma mãe, uma agenda marcada para o dia do parto, padrinhos escolhidos etc. O "quase" é só para dar um certo charme no diálogo com o outro.
"Quase ganhamos o campeonato". Podemos ser os últimos colocados na pontuação geral, mas nada impede que o sonho coletivo de tornar-se campeão chegue para todos. O "quase", que significa em diversos momentos do esporte uma impossibilidade real de vencer, mostra a possibilidade de uma melhora na auto-estima de diversas pessoas.
Eu quase escrevi o texto como pretendia originalmente. São quase uma e meia da madrugada desta segunda feira de agosto e estou quase dormindo. Acredito que os meus parcos, mas fiéis leitores me entenderão. Segue o texto na forma em que se encontra. Um "quase" texto.
Continuo aguardando as contribuições dos amigos e colegas para dividirmos o espaço do blog.
Para Humberto, um fluminense quase mineiro.

Tuesday, August 15, 2006

Coisinhas da Metrópole (I)


Morar e viver na metrópole tem características do movimento acelerado, das confusões cotidianas, dos ritmos desencontrados, da falta de tempo para desenvolver todas as atividades que pretendemos. Quantos lamentos tenho ouvido das pessoas que estão na Metrópole! Tudo parece o caos e o discurso saudosista dos modos de vida de antigamente ganha a admiração de muitos.
“No meu tempo”, dizem alguns, o velho era respeitado. “Naquela época”, reforçam outros, a palavra valia mais do que qualquer coisa. “Quando aqui não tinha nada disto”, registram outros, todo mundo conhecia todo mundo. E as frases que dão o tom de como era a vida corriqueira na metrópole de ontem seguem seduzindo e encantando as pessoas. As palavras dos velhos nos dão o tom de que muita coisa mudou neste “mundo de meu Deus”, só para citar mais uma frase bastante comum utilizada atualmente.
Fico aqui a perguntar se realmente as coisas mudaram ou apenas não percebemos que ainda hoje podemos dizer que expressões como “no meu tempo” ou “naquela época” ainda não perderam o seu prazo de validade. Vou enveredar pelas pequenas experiências cotidianas para explicar a minha dúvida sobre a validade das expressões citadas.
Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, um dos estados mais ricos do país. Nela vivem mais de dois milhões de habitantes. Nesta cidade o trânsito é maluco, há sérios problemas de habitação e de saúde, os índices de violência assustam e a as pessoas adoram comer pão-de-queijo. Muitos dizem que não conhecem sequer os seus vizinhos. Que pena, também não conheço os meus, nem esboçamos o mínimo de intimidade a não ser os velhos (mas importantes) cumprimentos formais.
Mas há um menino chamado Gabriel, que deve ter entre 7 e 9 anos, que traça caminhos diferentes das formalidades e imediatismo. Ele é meu vizinho. Entra na minha casa sem pedir licença e vai logo perguntando se não tenho docinhos para dividir com ele. Não sei de onde ele tirou a idéia de que tenho docinhos em casa, mas vai entrando sem cerimônia, perguntando o que estou fazendo, para onde fui, onde está a minha família etc. Dia destes, sem nenhuma cerimônia entrou no meu carro, conversou até dizer chega e me perguntou pra onde eu ia. A metrópole permite informalidade e intimidade.
O menino Gabriel quebra as relações formais, estressantes, angustiantes. Ele muitas vezes sequer fala comigo quando algo o aborreceu, mas de vez em quando comemos algumas balas juntos e esboço um início de convivência mais próxima com os seus pais. Coisinhas da metrópole.
Depois de um dia de trabalho de campo para a pesquisa de doutorado que estou desenvolvendo, paro para tomar um caldo em um destes centenas de botecos que funcionam em BH. Já passei por lá umas três ou quatro vezes e o dono, que me viu algumas vezes de longe grita “Paulinho”. Parece que somos velhos conhecidos e chego a acreditar nisto. Sai do balcão e vem me cumprimentar e perguntar como foi o dia, o que fiz e onde anda o meu amigo que foi lá comigo da última vez. Fiz um esforço para me lembrar do tal amigo e vejo que o dono do boteco esta bem bom de memória. Havia um amigo comigo da última vez que estive aqui? Pensei comigo.
Para esboçar um papo com o dono do bar, perguntei-o sobre o horários de funcionamento do local e ele disse que abre às 17 horas e fecha por volta de meia-noite todos os dias. Mas, complementa ele, “quando bate a saudade da mulher, eu fecho qualquer hora. Hoje é um dia que eu vou fechar mais cedo pois estou com saudade da patroa”. Apressei a colherada e terminei de tomar o meu caldo para não atrapalhar o romance do velho proprietário do boteco que foge do tempo padronizado de funcionamento de bares e da sedução do lucro em ir até o último cliente e inventa um outro tempo. O tempo das pessoas. Coisinhas da metrópole.
No meu bairro há uma banca de revistas bem próximo de onde moro. É daquelas com aspectos ainda mais antigos, quadradona, sem geladeiras para a venda de sorvetes, com poucas opções de revistas, não há livros para a venda e fecha bastante cedo.
Fui comprar jornal em um destes finais de semana nesta banca e não tinha dinheiro trocado em mãos. Voltei sem o exemplar? Claro que não. A mulher do jornaleiro disse que não havia problemas, que poderia pagar depois, pois eles já me conhecem. Me conhecem? Perguntei a mim mesmo. “Você passa aqui todos os dias pela manhã, pode pagar depois, não precisa ser amanhã. No dia que você quiser”, enfatizou a mulher.
Ah, meu Deus, pensei, como estas coisinhas da metrópole são boas para recompor o organismo e nos fazer acreditar no outro. Quem dera os bancos tivessem esta mesma flexibilidade que os jornaleiros me permitiram. Acho que leria mais. Se o tempo das aulas, da pesquisa e da produção científica se amparassem na teoria do dono do bar, descansaria mais. Se me permitisse dividir mais docinhos e intimidades com o outro, com certeza amaria mais. O “naquele tempo” é hoje, basta olharmos com um pouco mais de atenção.

Este artigo seria originalmente o primeiro do blog. Depois ficou perdido el algum lugar. Dedico-o a Adriana Angélica, que conheci “naquele tempo” do mestrado e que hoje desenvolve a sua pesquisa de Doutorado sobre a memória dos velhos de BH.

Saturday, August 12, 2006

Sorvete, lembranças e avó

Um sorvete traz muitas lembranças. Cheguei a esta conclusão após sair dia destes para aproveitar um dos poucos dias de calor que tem feito aqui em BH. Fui colocando diversos sabores em um pequeno recipiente para ver no que a mistura ia dar. Qunado cheguei quase ao final do balcão e as opções estavam no fim, vi um pote escrito "Ameixa". Olhei de novo, respirei fundo e lá estava eu caprichando na medida da bola e viajando no tempo por causa de uma bola de sorvete.
Explico: desde que eu era menino (ih, os anos passaram rápido) costumava ir com a minha avó materna tomar uns sorvetes após a missa dominical ou mesmo nos finais de tarde em qualquer dia da semana. Eu, indeciso como ainda permaneço, passava um tempão escolhendo se queria sorvete de tapioca ou de siriguela, se misturava sorvete de tamarindo com milho verde. Tempos em que eu morava no Ceará.
Depois vinha a boa velhinha (todas as avós são) e dizia sem nehum vacilo ou indecisão: "quero o meu de ameixa". Uma dezena de opções e ela dizia sempre a mesma frase: "O meu é de ameixa". Depois percebia que ela olhava curiosamente para ver se havia pedacinhos da fruta no seu pedido. Estes momentos não esquecerei jamais. O neto indeciso que saboreava fragmetos de diversos sabores e a avó decidida, que não se rendia aos apelos das demais opções de sabores de sorvete ofertados. "Ameixa faz bem", dizia ela. Concordava sem nem saber o porque.
Depois fui incorporando o sabor escolhido pela minha avó ao meu paladar. O sorvete com sabor de ameixa sempre está entre as minhas opções favoritas até hoje. Tem um sabor de carinho de vó. Faz bem mesmo.
Para não perder o costume, nesta última degustação de sorvetes que fiz há poucos dias, deixei a bola com sabor especial por último. Anos se passaram, erros cometi, acertos esbocei e percebi que um simples sorvete pode modificar planos, alterar humor, fomentar a suadade e estimular a memória. Ainda sinto o gostinho da interação com a vó Zeneuda no ar. Continuarei falando de goluseimas e pessoas.

Para Vó Zeneuda, que não toma mais sorvete comigo. Para Dona Noemia, que sempre tem uma boa conversa quando almoço em sua casa.

Monday, August 07, 2006

Lugares, "estranhos" lugares. Por Thiago Machado.

Viajar é sempre muito bom. Pra longe, pra perto. Pra cidades grandes e pequenas. Pro mato e pras metrópoles. De carro, de ônibus, de avião, de trem. Só não sei de navio, porque nunca viajei. Nem posso, ia ficar mareado.
Tive de ir a Alvorada de Minas, umas duas semanas atrás. Alvorada de Minas?? Onde diabos é isso? Essa é a pergunta que todos me fazem. Alvorada de Minas é uma cidade minúscula, de uns 3 mil habitantes, pouco depois da Serra do Cipó e de Conceição do Mato Dentro, a uns 200 km de Belo Horizonte. Pertinho! Ônibus às segundas, quartas e sextas, uma vez por dia, que leva umas seis horas pra chegar, porque para em todos os lugares.
Até Conceição do Mato Dentro, de fato era pertinho, tudo era familiar. Passando por Lagoa Santa, pela área dos acampamentos mais populares da Serra do Cipó, por caminhos que 10 entre 10 belo-horizontinos conhecem. Conceição – forma abreviada que os mais íntimos com a cidade usam, inclusive a placa – também é um lugar familiar, e próximo. Estando lá, eu sabia ainda que estava nos arredores da metrópole mineira.
Paro num posto de gasolina em Conceição para comprar água e me informar sobre como chegar a Alvorada (já tenho intimidade também), pois nunca tinha nem ouvido falar desse lugar. O frentista me explica – tenho um pouco de dificuldade de compreender, é incrível como o sotaque pode mudar tanto num raio de 140 km – que basta seguir a própria rua do posto por um tempo e eu verei uma saída à direita. “Mas não entre nessa ainda”, ele se adianta, “tem outra mais à frente que só dá em Alvorada, é mais fácil”. Pelo que eu entendi, a primeira serve para ir a outros lugares e eu poderia me confundir. Tudo bem. “Essa estrada lateral é uma estradinha meio ruinzinha”, ele me adverte. Eu pergunto se lá é chão. Ele fala “não, imagine, aqui na frente mesmo já começa a estrada de terra!! Daqui pra Alvorada é tudo chão!”. Que ótimo, eu penso. Mas o Mille é um bravo.
A estrada de chão não chega a ser ruim, e logo à frente passa a primeira entrada à direita, que eu evito. Mas a outra demorou muito a chegar, e eu vejo três homens na beira da estrada, esperando não sei o quê. Acho melhor perguntar e paro. Aqui começo a sentir um certo choque. Eu sinto medo de parar! Passava um pouco das 10 da manhã, horário em que mesmo em BH não se sente (tanto) medo... mas nos habituamos a desconfiar de tudo e, sobretudo, de todos. Não abro muito o vidro e percebo que é um pai e dois filhos adolescentes. Pergunto como chegar a Alvorada, e ele confirma que a próxima entrada é a correta. Agradeço e prossigo, e eles ficam na poeira do meu rastro. Então, me dou conta de que o ambiente em que eu estou é completamente diverso do meu habitat natural. É um lugar basicamente rural, antigo, que ainda não sofreu as conseqüências da urbanização. Conceição estava na fronteira: principalmente os jovens se comportam como os de Belo Horizonte, pode-se notar que as regiões mais pobres se assemelham um pouco às periferias da região metropolitana. Mas, saindo da cidade em direção ao Serro, naquela estrada de terra, entrei no “Brasil profundo”, à parte de tudo o que se passa nas urbes.
Por mais que se leia sobre isso, é difícil não sentir um estranhamento ao entrar nesse ambiente. A coisa fica mais evidente quando saí dessa estrada “principal” e entre na estrada vicinal, cujo único objetivo é levar à esquecida Alvorada de Minas. Não se vê nada nem ninguém. Não há pessoas, carros, quase não há gado.
Uma bifurcação mais à frente me deixa em dúvida. Não há ninguém para me orientar. Espero um pouco, com o carro ligado, completamente sem saber o que fazer (“minha nossa, e se o carro estragar aqui??” foi um dos pensamentos aterrorizantes que me acometeu, passarinho fora da gaiola). Enquanto pensava, comia o que sobrou do meu Ruffles, e ao mesmo tempo achava engraçado o quanto aquelas pseudo-batatas artificiais destoavam da situação, bem como o celular inútil e sem sinal.
Lá embaixo, vi um cachorro. “Deve ter gente”, pensei. De fato, do meio do mato saiu um senhor e uma criança. Fui até eles, um sol forte de inverno dissipando o frio. Parei o carro próximo. Eles me olhavam desconfiados, e eu mais ainda. Afinal, eu estou treinado para esperar assaltos em Belo Horizonte, não posso evitar. O velho parecia muito decrépito, e ficou me olhando e investigando o interior do carro empoeirado com curiosidade. O menino olhava mais de longe, com uma cara mais desconfiada ainda. A situação me deixou tenso, o velhinho não falava direito, mas me respondeu o caminho correto.
Mais um pouco de chão e Alvorada aparece. Uma igreja no topo de um monte, com algumas casas ao redor, escondidas entre muito verde. Tão perto da metrópole, mas tão isolada. A capilarização da rede de ocupação do território, pensei.
Assim que entrei na cidade, todos olharam. Por um momento pensei que era porque o carro estava muito sujo de terra e poeira, mas depois lembrei que todos os carros chegam assim e o estranho era a minha própria presença. Eu tinha que procurar o cartório da cidade. Algumas mulheres estavam nas janelas conversando e eu parei para perguntar se tem cartório na cidade (deveria ter perguntando “onde é o cartório?”, não ficaria tão evidente que eu pensava que não tem nada lá), e a resposta foi “sim, fica na praça!”. Óbvio.
A praça é onde fica a igreja (!), mas não achei cartório nenhum. Ao me ver passando em baixa velocidade, com cara de interrogação, as pessoas que estão na rua perguntam, cordialmente, se eu procuro por algo. Por fim, encontrei uma casa trancada em cuja fachada tinha uma placa “Cartório de notas e registro civil”. Mas trancada! Desci, com minha contínua cara de interrogação. Nisso, um senhor sobe a rua e diz “a dona já vai te atender!”.
De fato, em seguida sai da casa ao lado uma senhora, com cara de dona-de-casa, que parecia que estava fazendo o almoço. O cartório funciona numa casa antiga, e ela acumula funções de dona-de-casa e tabeliã, ou como quer que se chame quem tem cartório. Eu, me sentindo em outro país, expliquei cuidadosamente o que eu queria – as regras de convivência podem ser bastante diferentes.
Ela disse que faria a certidão que eu queria, mas que era pra eu voltar daí a um pouco. Não sabia o que fazer naquela cidade, mas saí andando. Quando eu cheguei à cidade, tinha sentido angústia. Sempre que estou nessa situação fico me imaginando naquele contexto, como se eu tivesse sido forçado a viver ali pra sempre. E isso me causou extrema angústia. Aquele lugar isolado, em si mesmo, no meio do nada, rural, com pouca gente... me senti sem ar. Depois, percebi que praquelas pessoas que nasceram ali, estava tudo bem. É claro que a influência do mundo “exterior” se faz sentir pelos meios eletrônicos de comunicação – TV e rádio, é claro. Mesmo porque eu pude ouvir uma adolescente, enquanto limpava a casa, ouvindo uma das músicas americanas da moda, dessas que tocam na Jovem Pan. E isso era contrastante com o lugar. Não sei até que ponto, com o passar do tempo, o que vai mudar; afinal, essa característica rural parece sobreviver somente porque ainda há pessoas de outros tempos. Tenho a impressão de que quando essas pessoas morrerem e os jovens de hoje forem os adultos, o isolamento vai fazer cada vez menos diferença, talvez o asfalto chegue, a internet...
Mas por enquanto não era nada disso. Por enquanto, um homem perguntou ao outro na rua se ainda tinha boi para vender, e ele informa que não, chegou atrasado: ontem mesmo matou dois e já vendeu tudo. Que Orkut que nada.

Tuesday, August 01, 2006

Ouvi por aí...


Ouvi por aí e começo a desconfiar que estas frases fazem certo sentido:

*Acho que vou votar na Heloísa Helena. (Com o atual quadro político não há muito o que esperar. Vamos ver o que acontece. )

*Meu dinheiro não dá pra nada. (Precisa comentar?)

*Aposto como ninguém sabe mais qual foi a última CPI. Os sanguessugas apareceram agora e pronto.

*O Corinthians perdeu, mas vai melhorar. (Se piorar é melhor extinguir o "timão").

*Dunga? (no comando da seleção). Sou mais a Branca de Neve.

*A bebida (alcóolica) está acabando comigo.


Até já. PH

Outro tempo

Moro em um pequeno prédio de um ainda pacato bairro de Belo Horizonte. Já vislumbramos uma quebra certa quebra neste ar bucólico com registros de assaltos, agressões e furtos de carros com mais frequência nos últimos anos. Sagrada Família é o nome do bairro e muitas ruas tem nomes de santos, como São Joaquim, São Lucas, São Roque e assim por dianta. O tom religioso está posto.
Então, para combinar o meu estilo pacato e certa santidade que me são próprios (escrevi esta frase apenas para provocar os amigos) optei por morar nesta região que traduz alguns costumes e atividades que parecem perdidos na trilha da chamada modernidade. Relações humanas cordiais, próximas e carinhosas ainda estão presentes com muita propriedade no cotidiano dos moradores do Sagrada Família.
Várias singularidades me chamam a atenção nas relações que as pessoas estabelecem no cotidiano deste bairro. Uma delas é a comunicação oral mais demorada, pausada, intensa. As pessoas conversam e vão além do simples "oi" ou de expressões corriqueiras como "com licença" e "Bom-dia" (que diga-se de passagem são extremamenmte importantes)". Basta dar uma volta no quarteirão e ver que as pessoas estão conversando. A internet parece não ter um peso tão forte aqui.
Da minha janela vejo os papos rolando diariamente. Parece que ninguém está atrasado ou cheio de tarefas por fazer. Esquisito, não? Aproxima-se das 14h e todos os dias um jovem grita: "Ô Rafael!!!" e o outro jovem sai da sua casa para conversarem na esquina a tarde toda com diversos outros colegas. São os guardiôes da rua.
Estes dias peguei um táxi para ir até uma agência dos correios. O carro leva exatamente 1min para chegar do ponto de atendimento até a minha casa. Mais rápido que a minha descida até a portaria. Os taxis pertencem a uma cooperativa de 30 condutores, todos nascidos e criados no bairro e o assunto das conversas sempre é o mesmo: a família que viu o bairro crescer, a praça que não existe mais, a mulher que vende empadas na esquina etc, etc. Se eu tivesse mais dinheiro só circularia de táxis com os motoristas da "Petrotaxi".
Como adoro conversas sobre mudanças no bairro e na cidade, vou logo começando o papo com a frase: "Você é morador do bairro?" (um condutor já havia me dito que todos eles são) e aí pronto, é só esperar a corrida terminar que até lá eles falam de família, do próprio carro, das ruas, das mulheres, futebol e deles mesmos.
Ontem quase perdi a paciência (ou o que me resta dela). Apressado para chegar ao correio, automaticamente falei a frase que inicia a minha conversa com os taxistas e o motorista falou tanto que diminiu a velocidade para terminar o assunto. Quando reforcei o pedido para acelerar um pouco, ele retrucou que "o correio não iria fechar naquele momento. Daria tempo demais para postar as minhas correspondências"."Pra que a pressa? Faz mal pra gente viver nesse corre-corre, finalizou". E tome papo. Desarmei o nevorsisimo.
Ao desembarcar ele percebeu que eu estava meio sem grana (sempre estou) e falou sem nenhum medo: "se tiver apertado me fala que passo depois na sua casa para pegar a grana". Agradeci a gentileza que nehum banco, financeira ou empresa de telefonia faz e optei por um desconto.
Este motorista morou 10 anos nos EUA, guarda a carteirinha internacional de motorista como um troféu e sempre que pego o seu táxi ele mostra o tal documento. "Nesta época ganhei muito dinheiro. Hoje já estou velho para estas aventuras", falou.
Informou que o bairro no qual moramos era uma grande fazenda e os lotes eram muito baratos, o que motivou que diversas famílias comprasem imóveis na área.
Em outros pequenos percursos de táxi outras histórias de vida e fatos comuns do dia-a-dia foram relatados. Volto ao assunto qualquer dia.

Para o Auro, sua sagrada família e Dona Joice, que gentilmente me apresentaram o bairro.