Um dos momentos mais importantes da minha vida foi quando entrei para a escola. Para ser mais exato, há 16 anos e 7 meses, em algum momento perdido do ano de 1990.
É engraçado como a tristeza e a nostalgia me tomam quando lembro deste dia: o preocupar com quase nada, a proteção e o carinho daquela mãe carinhosa que ficara a me olhar pela fresta da janela sorrindo e sempre acenando quando pro seu o meu olhar desviava, como se (mas era bem isso mesmo) dissesse com a voz de ternura que sempre teve: “não te preocupes, estou aqui”.
Falar sobre minha mãe é sempre tão fácil, basta me embebedar com a mesma meiguice daquela senhora de hoje 49 anos sofridos. Prometo voltar a este blog em breve para falar dela. É que hoje me deu vontade de escrever sobre um amigo que conheci naquele mesmo dia, o dia em que entrei para a escola, o dia em que me dei conta da importância de minha mãe, o dia em que descobri a amizade e as rugosidades do viver (ainda que só mais tarde pudesse ter me dado conta de tudo isso).
Jeremias era um mulatinho de sorriso difícil de se mostrar, barrigudinho e baixinho como eu. Eu o conheci neste primeiro dia de aula, mas demorou algum tempo até que ele pudesse soltar sua primeira resposta à minha insistente pergunta: – “Qual é seu nome”? “Jeremias”, disse ele. Eu sempre gostei de fazer amizades, e acho que venci pelo cansaço aquele garoto que insistia em não me responder nada. Via-se um garoto que não era alegre como os outros, as mulheres (aquele tanto de mãe que ficavam esperando seus filhos saírem da escola) diziam que ele era de uma família complicada, de “mãe alcoólatra e tudo”. Demorei para entender o que era alcoólatra e até hoje não sei o que é esse “tudo” com que terminavam a qualificar a família daquele que era simplesmente um “amigo mudo” que não gostava de muita conversa.
Era impressionante a relação desse meu amigo com os sacos de arroz. Ele os utilizava pra tudo, para carregar cadernos, para levar os poucos lápis de cor (a maioria já gastos. Provavelmente ele os aproveitara de alguns de seus irmãos mais velhos) e até mesmo serviam como guarda-chuvas – os sacos. Eu via com diversão a cena de seu irmão mais velho ir buscá-lo com um saco de arroz aberto tentando protegê-los em dia de chuva enquanto pisava descalço nas poças dágua que se formavam – sim, ele não tinha sapatos, nem mesmo daquele chinelinho havaiana que naquela época, diferente de hoje, era baratinho, baratinho, o mesmo que minha mãe usava. Talvez para que eu pudesse ter meus pés aquecidos em sapatinhos de couro e meus cadernos e lápis novos protegidos por uma mochila novinha.
Pouco tempo depois, acho que um ano talvez, num desses passeios que sempre fiz com meu pai às margens de um rio perto de minha casa, encontrei Jeremias, que ainda sem palavras mas agora com um sorriso enorme no rosto, se punha a brincar numa ponte de pau (que nem mais existe senão na minha memória e de alguns poucos, fora levada por um enchente cinco anos depois) debruçando sobre o pára-peito... Quis correr até ele, fui repreendido pelo meu pai: “Vamos embora, se esse menino cair no rio ainda vão falar que fui eu quem empurrei, não quero depois tentar catar esse muleque nágua”.
Há menos de um mês, no refeitório de um hospital de uma cidade vizinha à minha, onde meu pai encontrava-se na UTI vi novamente meu amigo Jeremias, agora mais falante. Foi ele quem deu início à nossa conversa:
– Ué, o que faz aqui?
– Meu pai, está na UTI.
– Qual o nom dele?
Respondi à sua pergunta. – Não se preocupe, ele é meu paciente, estou cuidando bem dele.
Jeremias é enfermeiro dos bons, tão humano que só as desumanidades da vida poderiam tê-lo deixado assim.
“Tem um amigo seu que está cuidando muito bem de mim. É atencioso e tudo que eu peço ele faz de bom grado” me disse meu pai em uma visita um dia depois. “Parece que eu o conheço de algum lugar, estou tentando lembrar dele, mas não consigo...” Melhor não, meu pai. Ás vezes não lembrar de muita coisa faz um bem danado.
À minha mãe, pelo carinho e pelos sapatinhos da vida sempre tão quentes; ao Jeremias, pelo cuidado com meu pai; ao meu pai, que me faz sentir tanta saudade desde quando resolveu romper o pacto e ir sem me avisar; ao irmão mais velho de Jeremias que, segundo amigos, também se despedira depois de mergulhar fundo no rio. Que estejam, ele e meu pai, melhor do que estamos agora.
É engraçado como a tristeza e a nostalgia me tomam quando lembro deste dia: o preocupar com quase nada, a proteção e o carinho daquela mãe carinhosa que ficara a me olhar pela fresta da janela sorrindo e sempre acenando quando pro seu o meu olhar desviava, como se (mas era bem isso mesmo) dissesse com a voz de ternura que sempre teve: “não te preocupes, estou aqui”.
Falar sobre minha mãe é sempre tão fácil, basta me embebedar com a mesma meiguice daquela senhora de hoje 49 anos sofridos. Prometo voltar a este blog em breve para falar dela. É que hoje me deu vontade de escrever sobre um amigo que conheci naquele mesmo dia, o dia em que entrei para a escola, o dia em que me dei conta da importância de minha mãe, o dia em que descobri a amizade e as rugosidades do viver (ainda que só mais tarde pudesse ter me dado conta de tudo isso).
Jeremias era um mulatinho de sorriso difícil de se mostrar, barrigudinho e baixinho como eu. Eu o conheci neste primeiro dia de aula, mas demorou algum tempo até que ele pudesse soltar sua primeira resposta à minha insistente pergunta: – “Qual é seu nome”? “Jeremias”, disse ele. Eu sempre gostei de fazer amizades, e acho que venci pelo cansaço aquele garoto que insistia em não me responder nada. Via-se um garoto que não era alegre como os outros, as mulheres (aquele tanto de mãe que ficavam esperando seus filhos saírem da escola) diziam que ele era de uma família complicada, de “mãe alcoólatra e tudo”. Demorei para entender o que era alcoólatra e até hoje não sei o que é esse “tudo” com que terminavam a qualificar a família daquele que era simplesmente um “amigo mudo” que não gostava de muita conversa.
Era impressionante a relação desse meu amigo com os sacos de arroz. Ele os utilizava pra tudo, para carregar cadernos, para levar os poucos lápis de cor (a maioria já gastos. Provavelmente ele os aproveitara de alguns de seus irmãos mais velhos) e até mesmo serviam como guarda-chuvas – os sacos. Eu via com diversão a cena de seu irmão mais velho ir buscá-lo com um saco de arroz aberto tentando protegê-los em dia de chuva enquanto pisava descalço nas poças dágua que se formavam – sim, ele não tinha sapatos, nem mesmo daquele chinelinho havaiana que naquela época, diferente de hoje, era baratinho, baratinho, o mesmo que minha mãe usava. Talvez para que eu pudesse ter meus pés aquecidos em sapatinhos de couro e meus cadernos e lápis novos protegidos por uma mochila novinha.
Pouco tempo depois, acho que um ano talvez, num desses passeios que sempre fiz com meu pai às margens de um rio perto de minha casa, encontrei Jeremias, que ainda sem palavras mas agora com um sorriso enorme no rosto, se punha a brincar numa ponte de pau (que nem mais existe senão na minha memória e de alguns poucos, fora levada por um enchente cinco anos depois) debruçando sobre o pára-peito... Quis correr até ele, fui repreendido pelo meu pai: “Vamos embora, se esse menino cair no rio ainda vão falar que fui eu quem empurrei, não quero depois tentar catar esse muleque nágua”.
Há menos de um mês, no refeitório de um hospital de uma cidade vizinha à minha, onde meu pai encontrava-se na UTI vi novamente meu amigo Jeremias, agora mais falante. Foi ele quem deu início à nossa conversa:
– Ué, o que faz aqui?
– Meu pai, está na UTI.
– Qual o nom dele?
Respondi à sua pergunta. – Não se preocupe, ele é meu paciente, estou cuidando bem dele.
Jeremias é enfermeiro dos bons, tão humano que só as desumanidades da vida poderiam tê-lo deixado assim.
“Tem um amigo seu que está cuidando muito bem de mim. É atencioso e tudo que eu peço ele faz de bom grado” me disse meu pai em uma visita um dia depois. “Parece que eu o conheço de algum lugar, estou tentando lembrar dele, mas não consigo...” Melhor não, meu pai. Ás vezes não lembrar de muita coisa faz um bem danado.
À minha mãe, pelo carinho e pelos sapatinhos da vida sempre tão quentes; ao Jeremias, pelo cuidado com meu pai; ao meu pai, que me faz sentir tanta saudade desde quando resolveu romper o pacto e ir sem me avisar; ao irmão mais velho de Jeremias que, segundo amigos, também se despedira depois de mergulhar fundo no rio. Que estejam, ele e meu pai, melhor do que estamos agora.
À meu pai:
(...)Sim, acuso-te porque fizeste o não previsto
nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.(Carlos Drummond de Andrade)
7 comments:
Caros amigos, o nome do autor da nova crônica é Arley Haley (com um L só). Pronto Arley, está feita a correção. PH
Eita, como um rapaz com um jeito tão bruto pode escrever uma coisa tão linda??? Capaz que deve di ser o interiorrr... Já falei diversas vezes, o Arley eh um cara de potencial, só que ele tem que largar a cachaça! Espero que este blog continue proporcionando momentos mágicos a cada um que o visite...
Um beijo PH.
Lu
To emocionado!
Presenciei tudo isso!
Sou o Irmão mais velho do Arley!
Dificil dizer alguma coisa nesse momento!
O arley é uma pessoa muito especial, para os quw não o conhecem tão bem quanto eu!
Que Deus o Abençôe!
To emocionado!
Presenciei tudo isso!
Sou o Irmão mais velho do Arley!
Dificil dizer alguma coisa nesse momento!
O arley é uma pessoa muito especial, para os quw não o conhecem tão bem quanto eu!
Que Deus o Abençôe!
Que história bonita... e que texto bem escrito!
lindo esse texto, paulinho. Ótimo compartilhar belezas, não é?
beijo grande,
sama
Lindo texto. Digno de grandes autores. Parabéns pela emoção colocada no relato.
Post a Comment