Tuesday, April 08, 2008

Respirando Mirtes

Ontem recebi o convite de um amigo para irmos assistir ao filme “A Culpa é do Fidel”, uma produção francesa que retrata com competência os conflitos de um casal, que envolvido na discussão política sobre o Chile na época de Salvador Allende, causa certo estranhamento no modo de perceber a política nos seus dois filhos, que são ainda crianças. O cenário onde ocorre a trama é Paris. O filme apresenta leveza e provocação na medida certa. Um bom programa.
Pois bem, quando estava prestes a sair de casa, entre fechar uma janela e escolher uma camisa apropriada para este dia de outono em Minas Gerais, vejo uma foto da Mirtes, uma das mulheres mais humanas que conheço. Na foto ela está ao lado da minha mãe em uma daquelas poses clássicas para fotos: estão abraçadas, sorrindo, no meio de uma sala de uma instituição onde são desenvolvidos trabalhos voluntários . Suspeito que as duas deram um retoque nos cabelos antes do famoso “click”. Estão lindas!
Saí para o cinema relembrando os muitos momentos em que Mirtes (durante algum tempo a chamávamos de “Mei Shu”, pois ela fazia parte da Igreja Messiânica) me ensinou a perceber que a vida é mais que mera adequação a um cotidiano estabelecido cheio de atividades por cumprir. Ela sempre afirmava que a vida é sinônimo de compromisso com os outros. Gostaria de fazer deste princípio uma prática mais real.
Esta mulher, que saía da lógica padronizada das futilidades de plantão, me convidava para ouvirmos juntos, em sua casa, música clássica e canções maravilhosas entoadas por Elis Regina, Gal, Milton Nascimento, Zizi Possi e tantos outros. Não, não era esta audição “em passant” que vemos hoje, onde as pessoas não têm mais paciência de ouvir a música até o final. Ouvíamos Caetano entoar “Odara, Odara” quantas vezes achássemos que fosse conveniente. Eu, assim como alguns outros amigos dela, partilhávamos a audição. Partilhávamos o coração. Partilhar é alma do compromisso com o outro.
Ao chegar ao cinema hoje à tarde, vi no mostruário de uma livraria o livro “Em algum lugar do passado”, obra que inspirou um filme que assisti com a Mirtes e que a música-tema me emociona como se a estivesse ouvindo pela primeira vez. Pedi ao vendedor para ver a obra em edição mais recente e um desapontamento instantâneo me tomou: o livro estava envolto em um pedaço de plástico, destes mais ordinários. A impressão que tive foi que aquilo não era livro, era canudinho de Mac Donald´s, cerveja quente, fósforo molhado, torneira vazando. Tudo, menos livro.
Na estante da casa da amiga que tenho muitas saudades os livros cheiravam a magia, a contato com a leitura, a simplicidade dos usos. Fernando Pessoa estava vizinho à Clarice Lispector, que ás vezes ficava quieta em frente ao Fernando Sabino, que um pouco cansado de tanto o importunarem, apoiava-se no velho Marx que insistia em dizer que não podemos esquecê-lo. Todos pareciam nos esperar. Todos, evidentemente, ao lado de bons vinhos. Nada de avisos como “Não toque!”, “Coloque o livro no lugar!” ou “Favor não tirar o plástico”. A estante da amizade tinha uma regra: livros são livros.
Na livraria, passo ainda os olhos por outros livros e vejo uma coletânea de textos sobre Edith Piaf. A foto da grande cantora estava estampada na capa. Aos que acreditam em “viagem fora do corpo”, posso assegurar que fui à Fortaleza, dei um beijo carinhoso na Mirtes e disse: “Obrigado por tudo!”.
Obrigado por me apresentar aos Movimentos Sociais quando eu ainda era um mero estudante de Sociologia; pelas inúmeras viagens a Aracati, Canoa Quebrada e Icapuí, quando eram lugares de representação menos turística do que os dias atuais; pelos milhares de “johreis”, que se não purificaram a minha alma, me ensinaram a parar um pouco no turbilhão da vida urbana; por me mostrar que além da industrial cultura massificante, havia outras opções de artes; por me deixar freqüentar o seu lar.
Obrigado por me fazer acreditar na absurda idéia de que os amigos, mesmo quietos, fisicamente distantes e sem uma comunicação mais freqüente, estão ao nosso lado, prontos, serenos, acolhedores.
Hoje estou respirando Mirtes. Hoje estou transpirando amizade. Hoje admiro Roberto Carlos.
#Na foto, Artur e Paloma, que eram crianças quando me tornei amigo de sua mãe.
(A foto é de Paloma, peguei no orkut e espero não chateá-la com isto)